No dia 21 de dezembro de 1964, eu andei por uma estrada que parecia se alongar por infinitos quilômetros. Nunca tive tanto medo. Enquanto caminhava, galhos, que pareciam braços secos com unhas compridas, verdadeiros tentáculos, se esticavam como tentando arrastar-me ribanceira abaixo. Eu não passava de um menino magro e tudo me assombrava. A caatinga nordestina em dezembro se faz de morta para sobreviver à fúria do sol. Mas naquele dia macabro, os garranchos pareciam ter ressuscitado só para me atormentar. Meu coração batia lento, o ritmo era espaçado. Cada batida estremecia o corpo. Em pânico, eu suava até a palma das mãos.
Hoje, quarenta anos depois, continuo andando por aquela mesma trilha tortuosa e sinistra. Quatro dias antes do Natal, revivo o mesmo medo. Sofro igualzinho - algumas dores nunca passam.
Ainda não entendo porque fui escolhido para levar uma notícia tão horrorosa. Mamãe, grávida de gêmeos, acabara de dar à luz a um menino e a uma menina; que recebeu o nome de Gelsa, mas não viveria. E eu tinha que comunicar isso para o tio Telmo. Ele morava no sítio Amargoso, que ficava no fim da estrada assombrada.
A gravidez da mamãe fora conturbada. Durante toda a gestação, papai esteve preso. Poucos sabem como a cadeia é ruim para a mulher e filhos. Lembro-me do beijo matinal que mamãe me dava no período em que papai foi mantido incomunicável. Era um beijo seco. Talvez a espera do telefonema com a voz do seu homem tenha enrijecido os lábios da mamãe.
Quase todos os meses de sua gravidez se passaram nessa agonia; que parecia ter acabado quando o jipe da aeronáutica parou em frente à casa do vovô e um soldado estendeu um documento que nos permitia ver papai. Mamãe, pesada, passou a nos levar nas visitas ao presídio. O sofrimento continuou, pois tudo era constrangedor. A vergonha das revistas somava-se à lentidão dos procedimentos burocráticos, que nos consumia horas intermináveis.
A dor foi tanta que a minha mãe se fez carne incompleta. E nossa irmã caçula nasceu com o sistema digestivo mal formado. Ela não podia comer porque não fazia digestão. Gelsinha morreu de fome e de sede em dois dias.
Faltavam três dias para o natal. Eu tinha feito, naquela estrada, a minha primeira oração. Falei com Deus com toda a sinceridade de uma criança. Pedi-lhe que curasse a Gelsinha. Aos prantos, implorei-lhe que não deixasse a minha mãe sofrer. Roguei-lhe que poupasse o meu pai de chorar na frente dos homens maus que o prenderam. Mas Deus preferiu guardar silêncio. E no dia 22 de dezembro de 1964, papai chorou na cadeia e mamãe sofreu amargamente.
Sei que muitos pais padecem no período do Natal. Mães choram. Suas lágrimas se desperdiçarão e não haverá ninguém para enxugá-las. Deus parece distante; mudo, em silêncio absoluto.
Continuo viajando pelas mesmas estradas amedrontadoras de minha infância. Hoje, porém, quero ser a boca de Deus, com ânimo para quem sofre. Quero anunciar que, se Deus habita no silêncio, ele não é indiferente. Quero ser um braço que sustenta os frágeis. Quero ser a resposta da prece da mãe triste. Quero dizer que o Deus ausente se faz presente através das pessoas. Quero convidar gente para encarnar a presença do Divino no mundo.
A vida continua repleta de estradas cinzentas, mas vamos exorcizar o medo neste Natal. Ninguém precisa viajar só. De mãos dadas, podemos experimentar a presença de Deus entre nós.
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
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21.12.08
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