21.12.08

A foice e as mãos

UM passo além e o piedoso – com a mesma estranhíssima expressão piedosa, já empunha a espada da traição irônica. Para trair uma causa basta abraçá-la com fervor excessivo; para saquear a boa nova basta bradá-la uma centena de vezes, usando sempre e energicamente e universalmente a mesma fórmula, e ela se tornará tão velha quanto terrível.

Ceifar os campos brancos reclama menos uma foice afiada e inflexível que duas mãos dinâmicas e sensíveis. Em um lance de supina ironia e a foice pode matar fervorosamente aqueles que pretendia resgatar. Na absurda história dessas latitudes austrais a cruz se afiou até cortar como uma espada colonial. Os campos brancos deram lugar a um veludo carmesim.

Pensei na metáfora das duas mãos dinâmicas e sensíveis quando ouvi a preocupação demonstrada por Faustino Teixeira no artigo Inculturação da fé e pluralismo religioso, publicado na íntegra aqui. Seguem trechos do mencionado trabalho:

A expressão inculturação refere-se a um neologismo específico da linguagem cristã. Trata-se de um termo típico do linguajar teológico e de recente utilização no discurso missiológico. Embora tenha uma conotação antropológico-cultural, este termo distingue-se de outros típicos do léxico antropológico, como é o caso de aculturação, enculturação e transculturação

(…) A inculturação é a encarnação da vida e da mensagem cristãs em uma área cultural concreta, de modo que não somente esta experiência se exprima com os elementos próprios da cultura em questão (o que ainda não seria senão uma adaptação), mas que esta mesma experiência se transforme em um princípio de inspiração, a um tempo norma e força de unificação, que transforma e recria esta cultura, encontrando-se assim na origem de uma “nova criação”.

Sob o influxo da reflexão antropológica, percebe-se hoje com clareza que cada sistema cultural tem sua lógica própria e articulada. Está superada aquela visão evolucionista e etnocêntrica que enquadrava os sistemas como sucessivos e não simultâneos, ocasionando graves distorções de enfoque (…)

É igualmente verdade que as culturas são dinâmicas e não estáticas, estando em contínuo processo de modificação. “Toda cultura é uma totalidade sensata, mas não uma grandeza fechada e intocável. A mudança de contexto com seus desafios ou o contato com outras culturas podem levá-la a transformações, acarretando aprofundamento ou enriquecimento de suas características próprias”. Mediante o processo ativo da inculturação ocorre um contato que suscita mudança, mas sempre a partir de dentro da própria cultura.

A inculturação não constitui uma mera adaptação, nem se resume a uma tradução da mensagem evangelizadora. Ela implica sempre uma reinterpretação criadora, o choque de um encontro criador. De acordo com um dos estudiosos mais originais sobre o tema, o teólogo Claude Geffré, “é necessário reagir contra a linguagem e a idéia de uma simples adaptação. Crer que se possa traduzir um mesmo conteúdo de fé numa outra língua sem proceder a uma reinterpretação do conteúdo, é permanecer no nível de uma adaptação e de uma concepção superficial e instrumental da linguagem”.

Todo processo de inculturação pressupõe o “risco de uma certa reinterpretação”. A verdade de qualquer religião, incluindo também o cristianismo, não pode ser identificada com um corpo estático de proposições imutáveis, mas está aberta a novos e inusitados dinamismos hermenêuticos. “A religião não é uma simples mensagem à qual se deve crer, mas uma experiência de fé reproposta como mensagem”. A inculturação do cristianismo pressupõe e exige a reatualização da experiência cristã fundamental no novo contexto histórico e cultural onde é convocada a atuar. Desta reatualização resulta uma “nova figura histórica do cristianismo”.

Alysson Amorim, no blog Amarelo fosco.

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