“Eu sou muçulmano! E sou hindu! E sou judeu! E sou cristão!”
Esta frase, colocada na boca de Gandhi em uma das cenas mais marcantes do filme que leva o seu nome, parece-me facilmente concebível na vida real do pacifista indiano.
Gandhi era hindu por criação. Durante certo tempo, no entanto, e devido fundamentalmente à sua formação como advogado, afastou-se bastante de suas raízes. Mais tarde, ao retornar à Índia, resgatou a espiritualidade de sua gente com ainda mais profundidade que nos tempos de infância e adolescência. Esta espiritualidade, familiarizada com a diversidade de um sem-número de tribos, permitiu uma pacífica e harmoniosa convivência durante séculos entre hindus e muçulmanos.
Liderado por Gandhi, o povo indiano venceu a luta contra o domínio britânico. Entretanto, e agora sem o apoio de Gandhi, hindus e muçulmanos perderam a guerra contra a cobiça e travaram uma batalha de irmãos contra irmãos, vizinhos contra vizinhos, parentes contra parentes. A antiga convivência harmoniosa tornou-se impossível graças ao anseio por poder: afinal, quem tomaria o lugar do Império Britânico e dominaria sobre todos? O resultado disto tudo, como sabemos, foi a divisão da Índia em Índia (destinada aos hindus) e Paquistão (destinado aos muçulmanos) e o assassinato de Gandhi.
Este foi o contexto em que Gandhi proferiu a frase citada. Gandhi não queria a divisão de seu povo. Ele não queria a divisão de seu país. Ele não queria a divisão dos seres humanos. Gandhi sabia que acima de nossas cabeças pendem os céus das diferentes religiões e que todos eles são de vidro. As diferenças são que alguns deles são mais extensos que os outros e que alguns permitem ver mais longe que os outros, isto é, alguns são mais translúcidos que os demais. Assim, mais do que crenças, o que nos une, Gandhi sabia, é nossa própria condição de limitados observadores e intérpretes da vida. É por isso que ele podia identificar-se não apenas como hindu, mas como muçulmano, como judeu e como cristão, pois identificava-se como e com o humano, em toda a sua limitação, parcialidade e desajuste.
Na abertura do filme consta uma citação de Einstein, onde ele diz, aproximadamente, que quando contássemos às gerações futuras a respeito de Gandhi, elas duvidariam que um homem assim tivesse caminhado sobre a terra. De fato, às vezes é mais fácil acreditar que uma divindade feita gente tenha andado entre nós do que admitir que um simples mortal como qualquer outro tenha se aproximado tanto da divindade. E isso tudo agora há pouco, no século passado.
Gandhi nos abre as portas para aquilo que em nossa própria humanidade e independentemente de nossa fé é mais aparentado com Deus. Gandhi defendeu e experimentou em sua própria vida aquilo que poucos depois de Cristo experimentaram: uma profunda reconciliação com a humanidade e com Deus. E é por isso que Gandhi nos desafia. É por isso que Gandhi nos denuncia. É por isso que Gandhi nos enlouquece. É por isso que ele nos inspira. Gandhi me (ins)pira.
Camila Hochmüller, no blog Metamorfoseantemente.
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