UM AMIGO que investe no otimismo social como esperança disse que eu devia ficar feliz porque existem pessoas que defendem a Amazônia, as crianças famintas e os touros. Minha insatisfação seria fruto de melancolia e vaidade. Eis uma verdade. Conheço pessoas que fazem o bem no mundo e hoje lembrarei uma delas.
Para a medicina antiga, a melancolia e a vaidade são a dupla face do vazio sem cura que corrói a alma humana. Lembrando das lições de Machado de Assis (aquele mesmo que Glauber Rocha, no seu delírio ridiculamente datado, pensava estar ultrapassado nos anos 60) e seu defunto filósofo Brás Cubas, talvez eu já esteja contagiado pela vertigem que marca algumas almas.
Concordo com o defunto filósofo: alguns são devorados pelo Inexplicável. Viver na vertigem não é necessariamente uma forma de melancolia, pode ser apenas uma forma intensa de viver. Não creio na possibilidade de explicar o essencial da experiência humana. Escolho viver com o Inexplicável.
Leio que agora os éticos de plantão desejam boicotar a Espanha por conta das touradas. Não gosto de touradas, só estive em uma. Acho que sou pé frio porque o touro se deu bem e o toureiro saiu de maca. Seria esta uma tourada eticamente correta?
Não conheço nenhuma estatística sobre quantos toureiros saem de maca das touradas, por isso não tenho nenhuma opinião "científica" sobre o assunto. Mas acho que deveríamos ir com calma e não nos metermos na vida cultural dos espanhóis de forma tão vulgar. Que tal boicotar o Carnaval porque ele pode ser visto como uma fábrica de abortos? Ou como um festival de doenças venéreas (prefiro este termo a grifes como "doenças sexualmente transmissíveis") e infidelidades?
Entre matar crianças e touros, ou maridos e esposas, quem é a vítima mais dramática? De novo, nada sei sobre estatísticas que quantifiquem a relação entre o Carnaval e abortos ou crimes passionais, logo esta minha modesta opinião não é tampouco uma opinião "científica". Podem desprezá-la tranquilamente e ir ao Carnaval.
Há algo de histérico nessas manias éticas. Mas minha dúvida é mais essencial. Ela está ligada ao que o poeta russo Brodsky diz no seu monumental ensaio "Aula Inaugural": "Hoje vou lhes falar de algo que vocês vão seguramente encontrar na vida: o mal". O mal, caro leitor, é mais urgente do que a mania ética.
É ridícula a tentativa de alguns antropólogos dizerem que o mal não existe apenas porque viajam (quando viajam) para pequenas ilhas distantes do Pacífico. Ou pequenos povoados na Amazônia. Confundem sutilezas da maldade com inexistência do mal. Existem cegos por excesso de informação (ou seria de estatísticas?) e não só por escassez. E acho que o mal também é parte do Inexplicável do qual fala nosso defunto filósofo.
Usei este ensaio no meu curso de mestrado e doutorado na Escola Paulista de Medicina em 2008. O curso era sobre o mal e faz parte de um projeto do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde da Unifesp de introduzir as Humanidades na formação de profissionais da área da saúde.
Entre minhas alunas mais atentas estava uma psicóloga. Inteligente, bonita e comprometida com a vida. O mal era um assunto que a interessava. Seu nome era Renata e ela foi, em meados do segundo semestre, brutalmente assassinada. Não há como justificar sua morte. Renata pesquisou em seu mestrado a dura tarefa que é falar da morte para pacientes terminais. Sua dedicação nos dá esperança, a forma como morreu nos tira. Esta é uma forma da vertigem.
Psicólogos são profissionais da vertigem e mergulham em sua escuridão. As sombras que recolhem não são apenas aquelas de seus pacientes, mas também das almas a sua volta. Frequentam as fronteiras do humano. Muitas vezes abrem as portas do inferno. Tocam em inseguranças e vazios ancestrais que permeiam as relações para além de toda explicação estatística. A literatura, na sua vocação de narrar a efêmera eternidade do humano, nos ensina aqui mais do que qualquer ciência, que apenas banaliza o mal.
Aqueles que amam a Renata sofrem diante do medo que, afinal, nesta pontual história, o mal tenha vencido. Neste primeiro ano novo sem ela, continuarão a cotidiana tarefa de arrancar sentido das horas que passam. Espero que ela, uma profissional da contemplação do amor, do medo e da sombra, esteja agora entre outros que também se dedicaram ao bem neste mundo.
Luiz Felipe Pondé, na Folha de S.Paulo.
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