Ao lado dele, nunca me machuco. Não vacilo em pena. Não me vejo sem sentido. Não me faço mal. Seu amor me inspirou a ser generoso comigo. Eu me amo a partir dele. Nunca gostei tanto do que sou depois que passou a me desenhar.
Não me abandona nos hábitos: põe meus óculos de mosca, dorme com minhas camisas largas e brilhantes, diz que sou diferente para ser bonito duas vezes (com susto e sem susto). Ele usa minha estranheza para que eu pareça menos estranho. Quando recebo uma crítica, atropela as vogais para me ajudar a esquecer rápido. E dança com sapatos grandes e perucas imitando músicas da televisão.
Ele é a paternidade que encontrei para morar mais perto da minha infância. Permito-me carências adultas. Uma noite sem ele e um dia sem ele são absurdos de ausência. Sinto saudades de mim com ele. Minha caligrafia é entranhar as mãos em seus cabelos argentinos e massagear sua nuca.
A verdade é que invejo meu amor por ele. Tenho que dissimular um pouco senão posso torturá-lo com tanto amor. Escondo para que ele não se dê conta de tanto que o amo. Temo massacrá-lo de cuidados, afagos, ternuras. Há que respeitar um espaço, um quarto, uma poltrona dentro de casa para me odiar. Mas cometo avareza em minha generosidade e não o largo sozinho para me contrapor. Não desmonto o quebra-cabeça para não extraviar alguma peça.
Se precisar limpar a casa, brincamos de sugar um e o outro com aspirador. Se digo que preciso viajar, ele prepara as malas com suas roupas. Ele ama fácil. Ama sem traumas, sem desculpa, sem provas, sem convencimento. Ama porque é mais fácil amar do que viver - e eu sempre acreditando no contrário.
Andamos de bicicleta por Porto Alegre. A alegria é descer as maiores lombas como a Lucas de Oliveira e a Bordini. "O medo tem que conversar sem gritar", ele me explica. Somos o fonoaudiólogo do medo.
Estou em falta com algumas perguntas feitas pelo meu menino no carro: qual o peso de um cavalo? Aproveito para responder com um dia de atraso: 500 quilos. O boi segue a meia tonelada. Sei que provocarei novas curiosidades. Como sua distância da Groenlândia.
Sua mãe deve enlouquecer como eu com o milagre de pijama, comendo pãozinho com queijo e tomando leite de manhã num prato azul. Mais do que eu, pois o milagre saiu de seu corpo. Vicente completa sete anos nesta sexta (20/02). Os dentes de leite estão caindo. "Queria que meu dente curtisse mais minha boca", confessa.
Eu também quero ficar mais tempo em sua boca. Todo o tempo em sua boca.
Desconheço mesmo o quanto que a memória de meu filho pesa na minha palavra. Vou demorar para não concluir.
fotografia de Vicente
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