9.2.09

O tigre branco

Talvez por ser filho de ateus, desenvolvi, desde cedo, uma vocação para a crendice. Sempre haveremos de querer contrariar nossos pais. Valeram-se da minha birra com o ateísmo, no início, minhas avós: uma católica bem carola e outra, protestante bem fanática.

Com a católica, eu rezava de manhã e de noite; com a protestante, eu frequentava cultos. Mais tarde, a minha sede de acreditar no imponderável me comprometeria os negócios. Muito bem sabemos que verdadeiros homens de negócio, por mais religiosos, reservam sua religiosidade para quando vão à igreja. No trato cotidiano com o dinheiro, podem até usar a Bíblia, mas será, no máximo, como o fizeram os bispos da Renascer, ao entrar em terras norte-americanas com cinquenta mil dólares encafifados no livro santo.

Da minha parte, sempre tratei mais de salvaguardar meus sonhos que meus bens. De tanto persistir nessa utopia, saí-me mal como gestor, mas, com o avanço da idade, finalmente, cumpro o desejo dos meus pais: torno-me cético. Mas veja, há dois tipos de céticos: o mal-humorado e o cético bem-humorado. O cético mal-humorado é um chato. O cético bem-humorado é, no fundo, um crente.

Enquanto o mal-humorado corta, seco e ríspido, qualquer tentativa de convencê-lo de qualquer coisa, o bem-humorado alimenta as intenções de quem busca fazê-lo crer. Para, com isso – a riqueza da argumentação que ouve – alimentar o próprio ceticismo. E, depois, rico de informações, devolve, com deboche inteligente, o aspecto ridículo de tudo que escutou. Por quê? Porque, como eu disse, o cético bem-humorado não descrê, por princípio, como o cético mal-humorado, mas descrê de algo consagrado por acreditar em seu contrário.

Certa vez um ateu me disse que não acreditava em Deus porque acreditava no Homem. Por mais chocante que fosse a idéia me fazia pensar. E eu pensei: acreditar no Homem significará, necessariamente, confiar no Homem? Não, da mesma forma que não crer em Deus não quer dizer desconfiar de Deus. Ou seja, é possível não acreditar em algo que, deveras, exista.

A crença não será outra coisa senão uma forma de opinião. Isso traz inúmeras vantagens, pois que a nossa própria descrença, aos olhos do crente – algo, até então, impossível de se crer – passa a ser aceita por ele como a nossa forma de crer. Seremos, enfim, todos crentes de que vemos o que outros não estão vendo. Ao crente, ateu ou teísta, tudo é claro, claríssimo. Daí, a riqueza de ouvir a uns e outros e alimentar o nosso ceticismo bem-humorado.

Não há nada mais divertido do que a crueza das realidades desmistificando as idéias. Por que essa conversa toda? Porque estou lendo um livro maravilhoso: “O tigre branco”, do indiano Aravinda Adiga. Confesso meu preconceito com uma certa avalanche de literatura de povos exóticos. De repente, só o fato de ser afegão, por exemplo, fez de certos autores, imperdíveis. Mas “O tigre branco” é muito interessante.

Adiga é o cético mais bem-humorado que já li. O que ele faz com a Índia, terra dele, onde, inclusive, vive, é de fazer nossos naturebas e iogues da Vila Madalena beber cicuta e jogar-se do Viaduto do Chá. Não fica pedra sobre pedra. Mas não se trata de um livro-denúncia, o que faz dele uma obra-prima. É apenas o olhar de um cético bem-humorado, que se diverte às nossas custas, que debocha da ingenuidade da nossa tendência para a mitificação.

Faz mais, no entanto, o autor: não contente em deitar ao ridículo um discurso que, até hoje, era apenas uma chatice, desmascara, ainda, o discurso do “business”, que tenta nos vender a Índia como um exemplo bem-acabado do capitalismo emergente. O New Yorker disse de “O tigre branco”, “Num tom sombriamente cômico, o sarcasmo e as observações agudas da organização social são a um só tempo cativantes e perturbadoras” e o Seattle Times, “Cruel e divertido... Impossível imaginar sátira mais ferina”. Está dito. E pensar que o autor tem apenas 34 anos e esse é o seu livro de estreia é de matar de inveja.

Fico feliz de estar lendo esse livro numa fase pessoal de ceticismo bem-humorado. Faz com que me sinta batendo um papo muito divertido com um amigo de longa data.

Stalimir Vieira, no Propaganda & Marketing.

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Um comentário:

Anônimo disse...

"Tudo muito divertido..."
sei...por enquanto.

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