Na terça-feira, o Supremo ouvirá os defensores dessa posição: a CNBB dos católicos, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família. Há argumentos sólidos e respeitáveis para ser contra o aborto de fetos sem cérebro, mas também há velhacarias e engodos. Para um deles, é preciso que a platéia esteja especialmente atenta porque são grandes as chances de que apareça na audiência pública do Supremo: chama-se Marcela de Jesus Galante Ferreira. É o nome da menina que viveu um ano, oito meses e doze dias em Patrocínio Paulista, mesmo tendo nascido, dizia-se, sem cérebro. Marcela morreu no último dia 1º de agosto, de pneumonia. Por ter sobrevivido tanto tempo, a pequena Marcela foi tratada como um milagre divino. Chegou a virar símbolo de passeata contra o aborto, que reuniu 5 000 fiéis católicos, espíritas e evangélicos em São Paulo.
Era comovente acompanhar o carinho e o respeito com que a mãe de Marcela a tratou em vida. Cacilda, lavradora do interior paulista, parou de trabalhar para cuidar da filha, agia como se ela fosse igual aos outros bebês e tirava fotos da criança usando um simples gorro, para não expor a parte superior da cabeça, deformada pela ausência do cérebro. Em matéria da repórter Adriana Dias Lopes, publicada por VEJA em agosto do ano passado, Cacilda afirmou: "Minha filha é muito carinhosa. As pessoas ficam tão encantadas com ela que não ligam para o formato de sua cabecinha".
Acontece que tomar o exemplo de Marcela, o milagre divino, o símbolo antiaborto, para proibir a interrupção da gravidez de fetos sem cérebro é exploração desonesta da tragédia alheia. A pediatra Márcia Barcellos, que cuidou de Marcela, examinando ressonâncias magnéticas de alta definição, concluiu que a menina sobrevivia porque não era um bebê sem cérebro. Ela tinha o mesencéfalo, parte intermediária do cérebro, e outras proto-estruturas que lhe permitiram tamanha sobrevida. Na sessão do Supremo, sempre pode aparecer alguém – bem-intencionado, lógico – dizendo que o aborto de feto sem cérebro tem de ser proibido porque ainda pode haver centenas de Marcelas vivendo anos a fio.
Se você ouvir isso, saiba: é um ardil.
André Petry, na Veja.
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