Etsi deus non daretur [Ainda que Deus não existisse]. Com a fórmula, Hugo Grotius procura legitimar seu direito natural sem recorrer a ente fundador que não seja a própria razão humana. Mas não é tudo: emana da sentença aquela pujante aspiração moderna por autonomia. Ainda que Deus não exista ou ainda que ele permaneça em sepulcral silêncio a vida deve ser afirmada.
Mais uma vez, não é tudo. A hipótese de Grotius e da modernidade pode ser anterior ao tempo: a narrativa bíblica surpreende o próprio Deus brincando com ela. O Deus cumulado de potências pela linguagem, entronizado pelo temor da carne ante o mysterium tremendum, enfim, o Ser Supremo abandona as alturas metafísicas e decide pousar os pés na poeira de Hamlet e Adão. A brincadeira consiste no fato da divindade entrar no cenário com a carne impermanente de um ator comum: quem pisa no palco não é o Ser revestido de éter, não é um Deus ex machina. A primeira fala de Deus na comédia humana é o choro de um corpinho vulnerável.
Não para aniquilar o sofrimento, senão para tomar parte nele; não para interromper com um definitivo milagre a via crucis humana, senão para nela ingressar com dentes, unhas e nervos. O Deus que anda conosco e nos oferece ajuda é lastimável – e não poderia ser melhor. Sua fraqueza sussurra-nos continuamente a fórmula de Grotius e convoca-nos a maioridade, um tempo em que a dor será amenizada pela carícia da fina mão de uma moça, não por mirabolantes operações celestiais, em que ela se tornará suportável depois do abraço suado e ordinário de um camarada, ao invés de desvanecer ao toque fantasmagórico de pululantes milagres. Um tempo em que não precisaremos alienar por preço vil nossa vontade a um Ser que compete com o homem sugando irresistivelmente suas forças.
Ainda que Deus não existisse, restar-nos-ia o calor consolador e inextinguível do sopro que um dia se fez carne.
Alysson Amorim, no blog Amarelo fosco.
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26.4.09
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